Em Pinheiros, homem em surto é rendido. Na Cracolândia, morre com 25 tiros
Raio-x das 246 mortes por policiais militares na cidade de SP em 2024 mostra disparidades na ação da PM em bairros ricos e pobres
atualizado
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Dois casos envolvendo abordagem de policiais militares a homens que estavam em aparente surto, em dezembro de 2024, ilustram como o CEP de uma ocorrência pode influenciar na sobrevivência do suspeito na cidade de São Paulo.
O primeiro caso ocorreu em um apartamento na região da Cracolândia, vizinhança pobre na região central da capital e foco de constante tensão com a Polícia Militar (PM). O segundo foi em uma cobertura em Pinheiros, bairro nobre na zona oeste paulistana.
Ambos compõem a reportagem especial “A política da bala”, publicada pelo Metrópoles nesta terça-feira (10/10) com base em documentos referentes a todas as ocorrências que resultaram em morte por intervenção policial na capital paulista no ano ado.
Os dados revelam que das 246 pessoas mortas pela PM em 2024, ano mais letal da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite (PP), 85 não portavam arma de fogo e 47 foram baleadas pelas costas.
Homem em surto na região da Cracolândia
Era véspera de Natal quando a polícia foi chamada para uma suspeita de gritos de uma criança na rua Aurora, Campos Elíseos, perto de onde ficava o fluxo de usuários de crack. Quando os agentes chegaram no local, encontraram o colombiano Michael Stiven Ramirez Montes, 33, em um aparente surto. O homem estava sentado, no chão do apartamento, esfaqueando um cão da raça bull terrier.
As câmeras corporais dos policiais mostram os agentes de arma em punho, em um corredor do lado de fora (foto em destaque), tentando negociar para que o homem largasse a faca. “Não vale a pena”, um deles diz.
Michael, com a faca no mão e o cão ensanguentado nos braços, não responde e continua a ferir o animal. De repente, um policial dispara. Foi o primeiro de muitos estampidos que lembraram um pelotão de fuzilamento. Ao todo, foram 44 tiros: 25 atingem o corpo do colombiano. O cachorro foi vítima de quatro disparos e também morreu.
Logo depois, um superior se aproxima dos policiais perguntando se o homem estava com a faca. “Estava, chefe”, responde um dos praças. Ele emenda com o questionamento se o suspeito foi para cima deles. “Chefe, toda hora ele tentou várias vezes esboçar. No momento em que ele tentou…”, dizia um PM, antes de ser cortado pelo superior. “Foi para cima">
Um dos agentes acaba respondendo que sim, embora as imagens mostrem que o homem permanecia no chão quando foi baleado. O chefe, então, sentencia que o uso da força foi necessário, versão dos policiais no boletim de ocorrência. O documento também registra o encontro de 320 gramas de maconha e dois invólucros de cocaína.
Homem em surto em cobertura de Pinheiros
No dia 6 daquele mesmo mês, a 6 quilômetros do cenário da morte de Michael, policiais da Rota, a tropa de elite da PM, foram chamados para uma ocorrência bem mais grave. O CAC (sigla para Colecionadores de Armas, Atiradores e Caçadores) Marcelo Berlinck Mariano Costa, 31 anos, havia feito disparos do alto de uma cobertura em Pinheiros, bairro nobre da capital paulista.

Assim que entram no prédio, os PMs escutam o som dos tiros. Ao chegarem no andar, o homem, também em um aparente surto, grita de lá de dentro para que a equipe entre. No entanto, logo em seguida, ele faz um disparo em direção à porta onde estavam os agentes. Os PMs retrocedem e resolvem chamar o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), setor da PM especializado neste tipo de ocorrência. Até que os especialistas cheguem, eles permanecem no local para a contenção da situação.
Os policiais, então, utilizam explosivos para arrombar a porta do apartamento. Um cão policial entra no imóvel e consegue imobilizar o homem. Os policiais prendem Marcelo sem disparar um único tiro. Lá dentro, a polícia encontra pequenos sacos plásticos com cocaína, além de outros já vazios, o que indica que teriam sido consumidos anteriormente. No imóvel, também foi localizado um arsenal com 152 armas de fogo.
Disparidade
O caso envolvendo o CAC aconteceu na região do 14º DP (Pinheiros), onde foi registrada uma ocorrência de resistência seguida de morte. Já o caso da região da Cracolândia se desenrolou no 3º DP (Campos Eliseos), com um índice cinco vezes maior de ocorrências com mortes por PMs.
A disparidade de casos se repete em outras regiões da cidade. O 89º DP (Morumbi) fica no bairro onde talvez haja a desigualdade social mais visível na capital: um cenário marcado pelas mansões do bairro que dá nome ao distrito e, de outro lado, pelas construções precárias da maior favela da cidade, Paraisópolis. Foi ali que os escrivães registraram mais casos de resistência seguida de morte: 14 no total.
O que diz a PM
A Polícia Militar (PM) afirma, por meio de nota, que “não tolera desvios de conduta” e que, “como demonstração desse compromisso, desde o início da atual gestão, 463 policiais militares foram presos e 318 demitidos ou expulsos”.
Segundo a corporação, todas as mortes por policiais são investigadas com acompanhamento da Corregedoria e do Ministério Público. Além disso, o comunicado afirma que em todos os casos são instauradas comissões para identificar “não-conformidades”.
“A atual gestão investe em formação contínua do efetivo, capacitações práticas e teóricas, e na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, como armas de incapacitação neuromuscular, com o objetivo de mitigar a letalidade policial”, diz a nota.